O Julgamento Final e o Apocalipse – Hans Memling

Sobre a Obra

Escutar áudio do texto
Desenho de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

O Julgamento Final e o Apocalipse – Hans Memling

Esta obra é um tríptico impressionante que retrata cenas do Juízo Final, com Cristo no centro como juiz, os eleitos à sua direita e os condenados à esquerda. 

Os detalhes incluem anjos, santos e figuras bíblicas, todos organizados em uma composição complexa e dramática que reflete a visão da época sobre o destino final das almas.  

Saiba mais sobre o Livro do Apocalipse nos filmes abaixo:

O Julgamento Final (Santo Afonso Maria de Ligório)

The Last Judgement (St. Alphonsus Liguori)

As visões de Santa Faustina sobre Céu, Inferno e Purgatório

Film L’Apocalypse illustrée 

PARAÍSO JUDEU – por Jeanne Chaille

JARDINS DA ETERNIDADE

Desde o século ll a.C, correntes do judaísmo imaginaram os caminhos da alma após a morte com várias divergências, mas uma única visão do paraíso primordial, um jardim ideal num lugar perfeito, com todas as árvores e animais do mundo.

O judaísmo tomou para si várias e ricas concepções orientais da vida após a morte. O texto bíblico apresenta elementos mitológicos porque surgiu na época dos primeiros grandes reis de Israel, os conquistadores de Canaã. 

Os hebreus precisaram resistir à concorrência dos textos pagãos e, para isso, assimilaram elementos da população cananéia. Tratava-se de manter, corrigir e reinterpretar as tradições ancestrais locais à luz da revelação do Deus único.

A primeira grande religião monoteísta do mundo, porém, tratou a mitologia pagã com moderação. 

A descrição do Eden, tal como aparece no segundo capitulo do Genesis, por exemplo, é de uma grande sobriedade em relação a de lugares paradisíacos orientais. 

“E Deus plantou um jardim no Eden”, informa o texto sagrado. 

A palavra Eden está presente em várias línguas semíticas e designa uma terra arável ou uma planície fértil.

Quanto ao nosso “paraíso”, ele vem do grego paradeisos, cuja origem é persa: pairidaeza, o parque da residência do rei Ciro, senhor da Babilônia, aliado e  libertador dos judeus deportados de sua terra natal. Essa área, no meio do qual passa o rio Meandro, tem um pomar, um jardim de recreio e uma reserva de caça. 

Segue o Gênesis: “Deus Eterno fez brotar árvores de todos os tipos; a árvore da vida fica no meio do jardim. (…) Um rio sai do Éden para regá-lo (…)”. O trecho revela a importância que a água, e as árvores tem no Oriente antigo.

El, pai dos deuses do reino cananeu de Ugarit, reside na nascente dos rios. Na Babilônia, a deusa Ishtar é borrifada com água para voltar dos infernos.

O herói mesopotâmico Gilgamesh, na busca da imortalidade, passa pela “boca dos rios” antes de chegar a um jardim, no qual os frutos eram rubis e as folhagens eram lapis-lazuli. 

Na Persia, o soberano da idade de ouro vive em um jardim de onde jorra a água da vida, que garantia a fertilidade da terra e o crescimento de vegetais, notadamente a árvore da vida.

Há mais coincidências na cultura de vários povos. “Então Deus Eterno criou uma mulher com a costela que ele tirou do homem”, retoma o Genesis. 

Isso se parece com o mito da origem do mundo sumério, em que Enki, o deus da água, estava com dores em uma costela: então, dela saiu a deusa curandeira Nin-Ti. O Adão judeu deu à sua mulher o nome de Eva.

PARAISO JUDEU

Em sumério, Ti é um homônimo: Nin-Ti é simultaneamente “dama da costela” e dama da “vida”.

Os jardins desses mitos orientais foram representados nos templos mediterrâneos, situados no alto de uma pirâmide chamada zigurate, réplica da montanha divina.

O leito nupcial dos deuses tinha como marco ritual um bosque, com plantas de diversas essências, cuja principal era a árvore da vida, que abre a porta do céu. Esse local suspenso era dotado de uma fonte de onde escorria água para regar a vegetação e perto da qual se erguia a serpente

Na Bíblia, a paisagem é a mesma, salvo que a árvore do conhecimento não tem qualquer paralelo com os mitos do Oriente Médio e modifica profundamente a concepção do jardim.  

O DEUS JUDEU NÃO MANTÉM NENHUM DIÁLOGO COM A SERPENTE E LHE RESERVA UMA MALDIÇÃO HUMILHANTE E IRREVERSÍVEL

Esse Deus, que se preocupa com valores espirituais e morais, significou uma reviravolta na concepção da paisagem. 

Ele proíbe ao homem tocar em sua árvore, sob pena de morte. 

Mas a serpente diz a Eva: “Não, tu não morrerás, mas Deus sabe que, no dia em que tu comeres o fruto, tu serás como os deuses, conhecendo o bem e o mal”.

GENESIS – No Oriente Médio, as forças do caos foram frequentemente personificadas em um monstro marinho com ares de dragão; em certas visões apocalípticas ele reaparece sob o nome de Leviatã. Aqui, no entanto, nada permite ligar a serpente ao Leviatã. 

O primeiro capítulo do Gênesis mostra um Deus único e todo poderoso, cujo hálito acaricia o abismo das águas. 

Devemos ver nisso uma dessacralização deliberada da serpente que, nos cultos mesopotâmicos, é a deusa da fertilidade e o símbolo da juventude eterna, sem dúvida porque ela descama e sua pele se regenera. 

“E Deus Eterno os expulsou do Eden (…), e colocou na parte oriental do jardim os querubins com a espada chamejante (…).” 

Na Babilônia, o querubim era um gênio alado, guardião que ornava os tronos e os santuários. 

Nos marfins sírio-fenícios os querubins ficam dos dois lados da árvore da vida; eles estão também na Bíblia, ornando o Primeiro Templo de Jerusalém, no tempo de Salomão.

Vivendo sob dominação estrangeira, eles profetizaram uma restauração das ruinas de Sião depois da destruição do Primeiro Templo pelos assírios e da deportação dos judeus para a Babilônia. 

Do deserto, Deus fez o Éden e a harmonia reinou entre os seres vivos. 

Todos os sobreviventes de todas as nações que marcharam contra Jerusalém vieram se inclinar diante do Eterno, nos dias do Messias. Não se trata, como se vê, de um paraíso para os mortos.

O Jardim do Eden

A ressurreição dos mortos, relacionada à noção grega de imortalidade da alma, aparece pela primeira vez no profeta Daniel (aproximadamente 170 a.C.), em uma Palestina helenizada: 

“Muitos daqueles que dormem no pó se levantarão, alguns para a vida eterna, outros para o opróbrio, para a vergonha eterna” (Daniel, 12, 2). Tal concepção era objeto de controvérsia no tempo de Jesus: os fariseus consideravam a alma eterna, os saduceus acreditavam que ela era mortal.

As visões do paraíso só aparecem nos livros excluídos da Bíblia, a partir do século II a.C. Neles, a expressão “jardim do Eden” pode designar três lugares diferentes: o paraíso original, aquele que recebe os justos depois da morte e, por fim, o paraíso escatológico, referente ao fim dos tempos.

Dado o apego do judaísmo à Terra prometida, a idéia mais comum nos textos apócrifos é que os justos, ou seja, os que vivem a verdade revelada pelo Deus único, provarão a felicidade definitiva em uma Jerusalém maravilhosamente transfigurada. 

O problema passou a ser, então, o que haveria entre a morte e o fim dos tempos. Alguns autores afirmavam que eles seriam recebidos pelos anjos e que Deus os colocaria em um sono bem-aventurado sob a guarda de uma assembléia de anjos até o dia do Juízo Final. 

Para outros autores, os bons homens já estão na luz, perto da árvore da vida e do “jardim da justiça”, onde esperam a hora da ressurreição.

TRIBUNAIS 

A ressurreição é reservada aos homens bons: “Depois da destruição dos abomináveis, os justos surgirão de seu sono, a sabedoria se levantará e a eles será dada” (Enoque, XCI, 9-10). 

No testamento de Levi, o Grande Sacerdote do fim dos tempos abrirá as portas do paraíso, afastará o punhal que ameaçava Adão e dará aos santos o fruto da árvore da vida. 

Outros vêem Deus aparecendo no “dia do eterno”, em meio a uma trovoada, acompanhado por miríades de anjos da armada celeste, caminhando na montanha do Sinai. Este acontecimento é às vezes descrito como um autêntico ato judiciário, no qual se verificam todos os procedimentos dos tribunais humanos.

Uma vez realizado o Juízo Final, os fiéis gozam de uma felicidade sem fim, em uma terra prometida semelhante ao primeiro jardim, a não ser que sejam transportados para o céu, onde “se transformarão em luz e em esplendor de glória, pois diante deles se espalharão as vastidões do paraíso” (Quarto Livro de Esdras). 

Os gozos corporais reservados aos bem-aventurados são abundantemente descritos nas visões do fim dos tempos: curados doentes por meio de águas e plantas, fim da esterilidade para as mulheres e dos partos dolorosos. 

Os gozos imateriais também estão presentes: os justos estão rodeados de luz e de glória. Enfim, os livros apócrifos anunciam que Deus viverá com os homens por toda a Eternidade: a exata restauração do paraíso perdido.

A literatura talmúdica consiste nos comentários rabínicos à Torá, texto central do judaísmo. Esses apontamentos, nos dois primeiros séculos, são muito reservados a respeito do paraíso. Sobre os detentores de uma recompensa imediata após a morte, há considerações a respeito de sua alma viver ao lado de Deus ou dos anjos. 

Mas permaneceu o problema do hiato de tempo entre a morte do justo e a volta do Messias. Por isso, pensou-se muito num juízo feito logo após a morte, pois a vida eterna não poderia esperar pela ressurreição final.

O judaísmo incorporou elementos de culturas orientais, como os querubins assírios que protegiam a árvore da vida. 

PARAÍSO JUDEU

Alguns rabinos colocaram o tesouro das almas no sétimo céu, o de Deus, sob seu trono ou no seio de Abraão. Desenvolveram-se visões paradisíacas de todos tipos, mas rapidamente os rabinos do século III combateram as imagens dos banquetes suntuosos que aguardam os bons fiéis em cenários fabulosos.

As perseguições das quais os judeus foram vítimas e sua paixão pelo estudo levaram os estudiosos a dizer que a recompensa dos justos será respeitar suas leis e estudar a Torá. 

Para muitos deles, a virtude em si mesma a retribuição. “Não sejas como os servos, que servem seu senhor na esperança de uma recompensa” (Avot, I, 3).

O tratado de Sanhedrin, presente no Talmude registra as discussões rabínicas, apresenta a visão de opiniões: a posição de que a alma aguarda ressurreição perto do trono divino e a de que sofria um julgamento imediato, antes da ressurreição e do Juízo Final. Ambos os lados, porém, estavam de acordo quando situavam o céu definitivo na Terra Prometida, outro nome para Israel. 

Na Idade Média, o platonismo, que professa a separacão da alma e do corpo, influenciou fortemente os rabinos: “A alma entra na luz, onde ela exalta e louva o Criador pela Eternidade. E seu paraíso, sua recompensa, sua beatitude” (Isaac Israeli). E quando Maimônides fala no paraíso, trata-se menos de um lugar do que da alegria da comunhão com Deus; o presente neste mundo é o saber, e a do além é a imortalidade das almas. 

Na Cabala, depois da ressurreição, o corpo se torna místico e imaterial.

CONCEPCAO ATUAL – O judaísmo moderno preocupa-se com a alma e com a figura do Messias, mas não retém mais as concepções de paraíso e inferno no sentido literal, como no passado. 

Ao contrário, deixa um grande espaço à imaginação.

O que acontecerá depois da morte não é objeto de um ensinamento público. O judaísmo apenas manteve a palavra de Deus proclamada pelos profetas: no tempo do Messias, a terra prometida se transformará no jardim do Eden, o lobo viverá lá junto com o cordeiro, e Israel será povoada apenas pelos justos, que ficarão ali para sempre.

Fonte: JEANNE CHAILLET é especialista em Bíblia e em linquas semiticas antigas, com várias pesquisas sobre as fontes cananéias do Antigo Testamento

CAMPESTRE, URBANO E CÓSMICO

por Jean Delumeau

Pradaria mágica, cidade dos tetos de ouro, esfera celeste, reino de música ou império de seres alados e homens céleres, os escolhidos. As representações do paraíso dos cristãos são abundantes e mutantes.

A noção de paraíso cristão mudou com os tempos. A iconografia de cada época apresenta o local para onde a alma migra, uma vez libertada do corpo impregnado de referências, primeiro terrenas, depois celestes e, por fim, abstratas e misteriosas.

O cristianismo se moveu par e passo com o homem ocidental, influenciado por sua evolução artística, cultural e científica. Uma das grandes revoluções nessa busca para mostrar o além ocorreu quando se descobriu que não havia um “em cima” e um “embaixo” no universo.

Nos primeiros anos cristãos, vigorou a promessa feita na cruz por Jesus ao bom ladrão – “Hoje, até tu estarás comigo no paraíso” – freqüentemente mal compreendida. 

Para os judeus da época, significava: “Hoje, tu estarás comigo no lugar onde os justos esperam pela Ressurreição”. Somente mais tarde, a palavra “paraíso” assumiu o sentido de um além bem aventurado e definitivo. 

Na origem, designava o paraíso terrestre a partir da palavra persa paradaiza, que originou pardes em hebreu, e paradeisos em grego, que significa jardim,

A primeira assimilação, pelo cristianismo, da eternidade bem-aventurada apareceu em um texto pertencente ao círculo de são Cipriano (século II). “O lugar do Cristo, lugar da graça”, é descrito como “uma terra luxuriante, na qual os campos verdejantes estão cobertos de plantas nutritivas e guardam intactas suas flores perfumadas”.

A despeito dessa menção precoce, o cristianismo deu espaço durante muito tempo a um lugar intermediário para o após a morte. Não é o purgatório, mas um paraíso terrestre. A prova é a inscrição na tumba de uma jovem romana, morta com 21 anos, no ano de 382: 

“Entre os perfumes deliciosos do paraíso, ela reina lá onde uma primavera perpétua mantém a grama das margens dos rios, e ela espera o Deus que a levará para regiões superiores”. Ou seja, um lugar verdejante é o ponto de espera por uma eternidade bem-aventurada.

O paraíso terrestre das origens tornou-se, mais tarde, celeste. Manteve durante muito tempo os mouros que tinha em suas raízes orientais. Mas de todo modo, evocava a natureza, só que numa versão perfeita. 

Essa natureza abençoada foi o que mostrou são Pedro Damião, no século XI. Eis sua descrição da eternidade: “Não vemos mais nem lama, nem lodo, nem contágio. Aqui, o horrível inverno não castiga mais, nem o tórrido verão. A floração contínua de rosas cria uma primavera perpétua. Os lírios brilham de brancura, o açafrão fica avermelhado, o balsameiro secreta seu perfume. Os prados verdejam, as plantas florescem enquanto correm riachos de mel. Aqui não há noite nem tempo. O dia é perpétuo”. 

Apesar da beleza destas descrições bucólicas, a compreensão do paraíso seria muito incompleta sem a menção a outros componentes, como a “Jerusalém do alto”, cujo surgimento encerra o Apocalipse atríbuído a são João (fim do século I). O tema da Jerusalém celestial é onipresente nos textos e nas imagens

Visões do pós morte: anjos e demônios foram acrescentados aos conceitos originais, mais simples e terrenos, do paraíso e do inferno.

Um jardim na Terra: a tradição mais antiga remete à boa vida dos justos na eternidade, entre flores e muito frescor.

Comentários sobre o Apocalipse, principalmente os do monge espanhol Liebana, no século VII, susci taram muitas ilustrações na época carolíngia. Então, as descrições esculpidas e pintadas do Juízo Final permitiram várias representações estilizadas da vida dos eleitos. Também o sucesso de Cidade de Deus, obra de santo Agostinho, provocou um novo fluxo de imagens dedicadas à Jerusalém eterna durante a segunda parte da Idade Média.

No fim do século XIII, o franciscano Giacomino da Verona escreveu com entusiasmo sobre a Jerusalém celestial: “As Escrituras dizem que as casas e os palácios são tão preciosos, e a obra é tão admirável, que ninguém que esteja sob o céu pode dize-lo, pois os blocos de pedra são de mármore fino, claros como o vidro, mais brancos que a pelagem da marta branca; dentro e fora, os quartos e as chaminés são pintados com lápis-lazúli e ouro de além-mar; as colunas e as portas são de um metal melhor que o ouro, mais claro que o cristal”

Raramente nos damos conta de quanto a referência à Jerusalém eterna do Apocalipse está presente no espírito da concepção das igrejas mais antigas. No entanto, isso explica, por exemplo, por que um grande número de edifícios ostenta grandes lustres, postos numa sala com 12 portas, como na cidade celeste evocada por são João.

A admirável fusão dos dois temas paradisíacos, o jardim e cidade celeste – brilha no conjunto de pinturas finalizado pelos irmãos Van Eyck, em 1432. O retábu lo A adoração ao cordeiro místico fica na catedral de são

A música era onipresente na iconografia paradisíaca desde a segunda parte do século XIV até a metade do século XVI. Certamente os anjos adquiriram o hábito de circular entre céu e terra e até de sorrir aos humanos, nas magnificas esculturas dos séculos XIII e XIV.  

Mas por muito tempo os únicos anjos músicos representados eram aqueles que sopravam as trombetas do Juízo Final.

A pradaria eterna e à “Jerusalém do alto”, a devoção e a iconografia cristãs associaram a corte celestial, cujos habitantes do paraíso já haviam sido enumerados por são Cipriano: “Abraão, Isaac, Jacó, todos os patriarcas, os apóstolos, os profetas, os mártires (…) a companhia dos justos e dos amigos de Deus”. Outros habitantes foram sendo inseridos ao longo do tempo, em novas representações artisticas.

Mais tarde, os anjos passaram a tocar instrumentos cada vez mais variados – em consonância com o desenvolvimento de instrumentos da Idade Média.

A VIAGEM DE SÃO BRENDAN

Avido por visitar o paraíso terrestre, que situara em uma ilha perdida no meio do oceano Atlântico, são Brendan (484-578), um monge irlandês, organizou uma estranha expedição. Construiu um navio leve, selecionou uma tripulação de 14 monges, embarcou estoques de viveres para 40 dias e partiu rumo ao Oeste.

Durante os sete anos de périplo, o herói enfrentou monstros marinhos, comeu sobre uma baleia adormecida, abordou terras misteriosas que apresentavam uma geografia mais mística do que terrestre. Assim, a ilha dos Pássaros revelou-se um refúgio de anjos caídos, mas que não haviam cometido o pecado do orgulho: eles purgavam suas faltas sob a forma de aves.

Continuando seu caminho, os monges passaram ao largo de uma ilha na qual havia muita fumaça, onde ressoavam permanentemente as forjas infernais. 

Pouco depois, eles descobriram um pobre homem agarrado a um recife e castigado pela tempestade: era Judas, que sofria mil suplícios, com um único alívio: gozava de uma espécie de remissão no dia da Páscoa. 

São Brendan e seus companheiros exploraram a região até encontrar um rio intransponivel. Um anjo veio saudá-los e dizer-lhes que eles não poderiam atravessar em vida aquela última barreira. Tendo atingido seu objetivo, os monges, satisfeitos, retornaram ao seu país.

Este relato, cuja mais antiga versão conhecida data do século X, fez sonhar os cartógrafos da Idade Média, que colocaram em seus mapas-múndi as ilhas “descobertas” pelo santo. O próprio Colombo esperou encontrá-las. Mas seria sem dúvida demasiado ilusório ver nessa lenda outra coisa além de uma odisséia celta e cristã: como todos os monges irlandeses de seu tempo, são Brendan foi um notável navegador mas ele nunca encontrou o paraíso terrestre e muito menos a América, como às vezes se afirma. J.D.”

AS VISÕES DO PARAÍSO

A partir meados do século XIV, os anjos músicos sos nas evocações paradisíacas do Ocidente que não completam de dia. Durante cerca de 200 anos (1350-1550), anjos músicos e orquestras angélicas foram tão numerosos que é possivel estabelecer uma lista deles. 

Seguem-se as visões paradisiacas de apenas dois exemplos emblemáticos. O grande vitral da rosácea (1517-1519) da catedral de Sens têm 31 instrumentos. Outro exemplo é a obra Concerto de anjos, de Gaudenzio Ferrari, aluno de Leonardo da Vinci, pintada entre 1535 e 1536 na cúpula de uma igreja de Saronno, na Lombardia. O coro e a orquestra contam 140 integrantes, um recorde nesse tipo de iconografia.

No Ocidente cristão, o acervo de imagens paradisíacas, particularmente rico no começo do século XVI, sofreu profundas modificações em seguida. Os anjos músicos começam a rarear; a Jerusalém celestial deixou de ganhar tetos de ouro e muralhas de pedras preciosas; os prados floridos e as árvores do paraíso desapareceram; os suntuosos trajes dos habitantes da corte celestial dão lugar a túnicas drapeadas. 

Tudo porque a Igreja romana, depois do Concilio de Trento (1545-1563), desconfiava das evocações demasiado precisas, ou seja, demasiado terrestres, do paraíso, que o protestantismo, de seu lado, rejeitava totalmente.

Em contrapartida, é preciso assinalar a renovação que o Renascimento e o barroco trouxeram na evocação do céu cristão. 

Houve a multiplicação das cúpulas, o domínio da perspectiva e do ilusionismo associação das figuras pintadas e das modelagens em estuque e a combinação do espaço ilusionista da pintura com o espaço real da arquitetura.

A partir da arte dos séculos XVI a XVIII, a exaltação da corte celestial reunida no paraíso cede espaço para o momento fulgurante da ascensão de Jesus, da assunção de Maria, assim como a ascensão dos anjos e dos santos aos céus. 

Todos estes temas aparecem representados por movimentos giratórios prodigiosos, que os fiéis observam, fascinados, da terra.

CIÊNCIA – Outros fatores interferiram nas relações entre os homens do Ocidente e o paraíso a partir do Renascimento. Martinho Lutero foi decisvo nesse processo. Sua Reforma protestante pregou a desconfianca em relação a imagens e aconselhou a sobriedade no discurso sobre o além. 

“Assim como a criança, quando no corpo da mãe, sabe pouco sobre seu nascimento, nós sabemos pouco da vida eterna”, disse Lutero.

O Renascimento, por sua vez, introduziu a mitologia clássica na arte cristã. E o céu pagão dos antigos assumiu as cores e a disposição do céu cristão, que, por isso, se deturpou. 

Ao mesmo tempo, a atenção crescente de artistas e de seus clientes à vida cotidiana e à natureza levou, principalmente na Holanda do século XVII, à produção de obras nas quais o céu dos fenômenos meteorológicos e da passagem dos dias e estações passou a ocupar um lugar até entao ocupado pelo céu da corte celestial.

Por fim, a “nova astronomia”, resultante dos trabalhos de Kepler, Galileu e Newton, destruiu em 150 anos a cosmografia aristotélica cristianizada. 

E obviamente aniquilou a sacralização do céu, anteriormente aceita por unanimidade. As esferas cristalinas desapareceram. (o céu surge a partir de então senão como infinito, ao menos como indefinido).

A”NOVA ASTRONOMIA” ANIQUILOU A SACRALIZAÇÃO DO CEU. O FIRMAMENTO PASSOU A SER INFINITO, OU, NO MÍNIMO, INDEFINIDO

Na vida, não havia mais o alto ou o baixo no Universo. Foi preciso renunciar ao firmamento como espaço de Deus, dos santos, dos anjos e dos eleitos. O paraíso não tinha mais lugar definido – ou pelo Cristo menos não deveria ter.

A árvore da do Genesis ganha elementos ao história, como imagem do crucificado.

Foi, de fato, um terremoto cultural, mas seus efeitos se fizeram sentir apenas posteriormente nas mentalidades, na arte e na ciência. Esse terremoto desestabilizou lenta e progressivamente a idéia que se fazia do paraíso. O que restou dele?

Um olhar sobre a longa história cristã revela, então, que dois discursos contraditórios sobre o paraíso coabitaram no mesmo espaço de pregação por muito tempo e sem maiores dificuldades e questionamentos dos fiéis.

Apresentavam-se magníficas imagens da Jerusalém celestial e do jardim eterno, mas, ao mesmo tempo, afirmava-se que o paraíso era irrepresentável. Jesus nunca o descrevera, e são Paulo, na Primeira epistola aos coríntios, declarou que a sabedoria divina nos revela “o que o olho não viu e o que a orelha não ouviu) tudo o que Deus preparou para aqueles que o amam”.

Ora, essa frase, repetida a cada era do cristianismo, sempre foi compreendida como um convite para não se tentar elucidar com meios humanos os segredos do paraíso. 

O “catecismo” do Concílio de Trento também ensinava: “Hoje é impossivel que nós compreendamos a grandeza desses bens (…) eles não podem se manifestar no nosso espírito. Para prová-los, é necessário que tenhamos penetrado na alegria do Senhor”. O cristianismo acabou por renunciar progressivamente a uma iconografia paradisíaca, belíssima durante muito tempo, mas que se tornara cada vez menos digna de crédito. 

No entanto, a história mais recente, de ruptura de tradicionais laços de sociabilidade, levou à aspiração de um além de afeições recíprocas, capaz de apagar a incompreensão, o ódio e a solidão da Terra.

Fonte: JEAN DELUMEAU é historiador e autor de uma formidável obra sobre história da religião. No Brasil há inúmeros livros seus publicados, como História do medo no Ocidente, O que sobrou do paraíso e Mil anos de felicidade (Cia das Letras).

INFERNO CRISTÃO – AS TREVAS

por Liliane Crété

Entre os séculos III e VI, a percepção do inferno levou os homens da Igreja a inflamados debates. De Clemente de Alexandria ao Papa Gregório, o Grande, passando por Santo Agostinho, o olhar se radicalizou.

Eis que o diabo não nasceu como hoje é pintado pela Igreja Romana. Ou seja, no fim, a depender do coração do homem, tudo poderia dar certo.

Essa visão menos radical do Juízo Final, porém, não resistiu à Idade Média. E a teoria da danação eterna triunfou. 

Até porque assim convinha a uma religião hegemônica, que quis aumentar seu poder e, principalmente, seu controle sobre os crentes.

No Antigo Testamento, o termo Sheol designa o sombrio e subterrâneo local dos mortos, para onde descem os maus e também os bons. A idéia de punição divina após a morte ainda não havia ocorrido aos hebreus: quando Deus estava descontente, castigava os homens durante a vida.

No Novo Testamento, apareceu o aspecto punitivo do Sheol, tornado inferno. No século I d.C., foi definido como lugar de estadia das almas excluídas do reino de Deus, visão arraigada entre os fariseus, um dos quatro movimentos do judaísmo.

O próprio Jesus, durante seu ministério, ameaçou os malvados com o terror e a dor do fogo eterno. A partir desse ensinamento, seus adeptos, vindos do paganismo, adotaram a versão de dois lugares, céu e inferno. 

E as visões aterradoras de demônios e de danados torturados alimentariam o imaginário cristão durante os séculos seguintes.

Até o século IV, não se pode falar de ortodoxia cristã, mas de correntes de pensamento cristãs. 

Isso porque o cristianismo se desenvolveu em diversas regiões, sob formas diferentes. Diante das críticas dos judeus e dos pagãos, alguns sábios tomaram a pena para defender o cristianismo. 

Em todos os apologistas havia a mesma preocupação com a sorte do homem após a morte, pois Jesus prometeu o reino para os justos e o castigo para os ímpios.

Clemente, considerado o fundador da teologia de Alexandria, foi um teólogo grego que viveu aproximadamente entre os anos 150 e 220. 

Pagão de nascimento, aproximou-se do cristianismo por meio da filosofia. 

Ele menciona os textos de Platão sobre os castigos do além e a esperança de outra vida em sua obra Os Estrómatas.

Clemente de Alexandria, como era chamado, rejeita a idéia de punição pelo fogo, que teria sido “roubada da filosofia bárbara”. 

O mesmo julgamento ele reserva para a noção de diabo, chefe dos demônios. Como Platão, o grego ex-pagão o vê apenas como uma “alma maligna”.

DE ACORDO COM SANTO AGOSTINHO, A HUMANIDADE HERDA, GERAÇÃO APÓS GERAÇÃO, O PECADO DE ADÃO. ENTÃO, TODOS SÃO CULPADOS E CONDENÁVEIS.

O Deus de Clemente é infinitamente bom e justo, dado apenas a punições educativas, o que resultou numa visão otimista da salvação: todo cristão podia e devia esperar pela felicidade eterna, mesmo os justos que não conheceram Jesus. 

Confrontado com o fato de o próprio Cristo ter falado em batismo de fogo, deduziu que se tratava de um fogo “inteligente”, que penetrava na alma pecadora para santificá-la e purgá-la de impurezas em vista da restauração final. 

Suas posições, porém, desagradaram a Igreja Romana.

Orígenes (185-253) tomou, em seguida, o lugar de grande erudito da teologia alexandrina. 

Também teólogo, foi o primeiro escritor cristão nascido em uma família cristã. Como Clemente, ele acreditava na grande bondade e na misericórdia de Deus. 

“Deus, nosso salvador, quer que todos os homens sejam salvos e atinjam o conhecimento da verdade”, disse ele, apoiando-se na Primeira Epístola a Timóteo.

Desenvolveu a tese de Clemente da restauração final (chamada por ele de apocatástase), segundo a qual toda a humanidade seria englobada e recapitulada em Jesus Cristo. Dito de outra forma, que toda a humanidade seria salva.

Em suas obras apocatástase e Tratado dos princípios, Orígenes escreveu:

“Pensamos que a bondade de Deus unirá por seu Cristo toda a criação em um fim único, depois de haver reduzido e submetido até os inimigos”. 

A palavra “submetido” expressa aqui uma submissão ao Cristo não violenta, não forçada, mas voluntária.

Ele também rejeita a noção do suplício de fogo aplicado aos maus pelos demônios. Não se trata de um fogo material, mas espiritual, aceso pelos pecados daqueles que não são justos. As almas seriam torturadas pela tomada de consciência dos pecados e da separação de Deus, pela cegueira em relação à harmonia e organização perfeitas do mundo criado por Ele.

Mas, nessa perspectiva, toda punição deveria permitir que o culpado se emendasse e se reunisse ao Altíssimo. 

A apocatástase, para Orígenes, é o retorno a unidade inicial, o que dispensa as noções de “mal absoluto”, de danação e de eterna separação de Deus. 

De novo, a hierarquia católica não concordou. Repreendeu-o energicamente por essa posição. 

Sua obra foi atacada nos séculos seguintes, justamente naqueles em que a Igreja construiu sua hegemonia na Europa. 

Apaziguada durante certo tempo, a querela tomada com intensidade no século VI. 

No II Concilio Ecumênico de Constantinopla, que se reuniu em 553, a doutrina alexandrina foi amaldiçoada. 

Os últimos decretos foram contra os heréticos. Origenes estava na última posição da lista. 

Condenação trágica: uma grande parte de sua obra na língua original foi destruída.

A partir daí, a visão do inferno que foi considerada pela Igreja e que os padres utilizariam à saciedade para manter obedientes os fiéis, passou a ser a de Santo Agostinho, gênio do cristianismo latino.

Agostinho aderiu, na juventude, ao maniqueísmo, movimento fundado no século III pelo profeta persa Mani – chamado por alguns de Maniqueu. 

Mais tarde, negou a ideologia passada e se converteu ao cristianismo. Passou, então, a criar doutrinas ao calor das controvérsias de seu tempo.

Quando se tornou bispo de Hipona, Agostinho combateu sem tréguas os conceitos do maniqueísmo, que conhecia muito bem, e ainda as ideias do monge Pelágio, para quem o homem jogava um papel para a sua salvação. 

Travou combate também com as ideias dos neoplatônicos.

Para Orígenes de Alexandria, mesmo os pecadores seriam salvos no dia do Juízo Final

Agostinho rejeitava firmemente, além da salvação para todos, a tese da preexistência das almas e, portanto, de uma criação espiritual anterior à criação material. Em A cidade de Deus, ele atacou frontalmente Orígenes várias vezes.

O problema do mal o preocupava, e por isso mesmo o maniqueísmo, com seu dualismo integral, atraiu-o durante algum tempo. A primeira falta de Adão e Eva era um tema de reflexão central para Agostinho, que queria compreender como Deus deixara Adão pecar.

A certa altura, uma teoria surge em seu espírito: a humanidade herda, geração após geração, o pecado de Adão. Então, todos são culpados e condenáveis. 

Só que Deus, em sua grande bondade, escolheu salvar uma parte da humanidade. No entanto, falar de eleição para um pequeno número é falar da rejeição do maior número. 

Assim, dedicou em A cidade de Deus um livro inteiro ao Juízo Final e outro ao suplício dos “maus” – o que prova que o assunto lhe interessava.

Agostinho colocou o Juízo Final como uma série contínua de juízos, começada quando Deus expulsou Adão e Eva do paraíso.

Passou em revista todas as menções da Bíblia ao assunto, com o livro do Apocalipse ocupando posição central. 

Em seguida, insistiu na separação dos bons e dos maus no último dia, como um “pastor separa as ovelhas dos bodes” (Mt, XXV, 32).

A etapa final da série de juízos é baseada no Apocalipse: “E aqueles que não estavam inscritos no livro da vida foram lançados no lago de fogo”.

Sobre essa passagem do Livro da Vida, Agostinho fez o seguinte comentário: 

“Esse livro não vem ajudar a memória de Deus para poupar-lhe o erro de um esquecimento, mas significa a predestinação daqueles para quem vida eterna será dada. (…) 

Ele não lê esse livro para conhecê-los, mas para sua presciência do destino deles; sua infalibilidade premonitória é esse livro”.

E como os justos, com o coração alegre, entrarão na beatitude prometida, os maus, açoitados pelo terror, irão ao suplício de “fogo, tempestade e espada”, escreveu Agostinho. Depois do Juízo Final, disse, haverá para os injustos uma segunda morte, muito mais terrível: 

“De todos os males, o pior: essa morte que não procede mais da separação da alma e do corpo, mas da eterna união de ambos em sofrimentos eternos. 

É então que os homens não estarão mais ‘antes da morte’ e ‘depois da morte’, mas sempre ‘na morte’, vale dizer, jamais vivos, jamais mortos, mas morrendo sem fim”.

O ABISMO 

Agostinho se baseou na Escritura Sagrada, mas é preciso dizer que sua interpretação dos textos bíblicos, principalmente os do Antigo Testamento, mostra a utilização polêmica que fez deles e sua evidente ignorância do pensamento judeu. 

De todo modo, os pensadores cristãos sempre colocaram em perfeito equilíbrio o bem e o mal, o céu e o inferno, a salvação e a danação. Diminuir os sofrimentos dos danados comprometeria a felicidade celeste.

Agostinho disse tudo sobre o inferno. Só faltou fixar definitivamente seu lugar. Disso cuidou o Papa Gregório, o Grande (aproximadamente 540 a 604). 

О mais provável é, segundo ele, que estivesse “subterra”, como estava o Sheol hebreu, só que seus habitantes não são sombras, mas sim seres condenados pela justiça de Deus a sofrer torturas para sempre.

A opção “subterra” está em conformidade com o Novo Testamento, em particular com o Apocalipse, no qual a residência dos danados e dos demônios está claramente situada em um abismo profundo, tão distante quanto possível dos céus, morada de Deus, dos anjos e dos eleitos.

Gregório, o Grande, era admirador de Agostinho e retomou seus conceitos para torná-los dogmas do catolicismo, acrescidos de elementos supersticiosos. A partir desse momento, o cristianismo colocou no centro da sua teologia o pecado e suas consequências.

O próprio papado fez sua, até 2007, a ideia agostiniana do limbo, lugar de acolhida das crianças mortas sem ter passado pelo batismo. Ali, essas almas inocentes permaneceriam pela eternidade, privadas da visão de Deus.

O inferno de Gregório, o Grande, que se tornou o inferno de toda a cristandade ocidental, é como aquele de Agostinho: lugar onde os danados nunca estão vivos, nunca mortos, mas morrendo sem cessar nos tormentos. 

LILIANE CRÉTÉ é teóloga, escritora e doutora em civilização e literatura

HISTÓRIA VIVA

UMA VISÃO

Que visão incrível a das agruras do monge Wetti que, à beira da morte, foi levado por um anjo a diversos lugares do inferno, onde os pecadores eram torturados.

Ele cruzou com sacerdotes e com as mulheres que os seduziram: elas estavam afundadas no fogo até o sexo. 

Em um castelo de madeira e pedra, todo envolto em fumaça, o anjo lhe disse que nele se encontravam os monges, levados até lá para purgação.

Para sua grande surpresa, Wetti reconheceu Carlos Magno, “de pé, com as partes genitais dilaceradas por mordidas de um animal, e o resto do corpo ileso”. 

O tormento sofrido pelo imperador indicava claramente a natureza do seu pecado.

O anjo explicou a Wetti que “não pôde evitar lembrar todo o bem que o imperador fizera para a defesa da fé católica e a proteção da Santa Igreja”. 

Carlos Magno, contudo, cometeu um estupro ilícito, acreditando que seria compensado por suas boas ações. 

Enganou-se. O anjo, porém, tranqüilizou Wetti: “É um predestinado a partiIhar da vida dos eleitos”, disse, e recebia ali uma punição apenas temporária, destinada a purgar seus erros.

Wetti existiu. Monge da abadia de Reichenaum, no lago de Constança, ele morreu no dia 4 de novembro de 824 – 10 anos depois de Carlos Magno.

Narrou a visão na véspera de sua morte. O abade de seu mosteiro, Heito, redigiu-a em prosa, e depois um discípulo de Wetti, Walafrid Strabon, escreveu uma versão em versos.

Wetti não citou o imperador. Walafrid também não o nomeou, mas tornou evidente a alusão ao formar o nome de Carlos Magno com a primeira letra dos versos que tratam das desgraças do soberano.

Na época, tais relatos tinham o objetivo de fazer circular mensagens de natureza política. 

Em 824, a visão de Wetti se inseria em um contexto de reforma da Igreja e da sociedade, que dava ênfase a conceitos de pureza e de mácula que até então não ocupavam um lugar central. 

A vida privada de Carlos Magno, mesmo que nenhum contemporâneo tenha ousado criticá-la, não foi a de um cristão exemplar: casado cinco vezes, teve vários filhos com diferentes concubinas. 

Esse aspecto nada tem de muito surpreendente ou de chocante para um soberano. Aparentemente, as relações privilegiadas de Carlos com suas filhas provocaram mais comentários – ainda que não explícitos.

Isso ocorreu à medida que a legislação do casamento cristão – realizado em público, monogâmico e indissolúvel – se desenvolvia, transformando em pecado as infrações e obscenidades que até então eram consideradas simples delitos.

Vários historiadores tentaram identificar o pecado de Carlos Magno. Desde a Idade Média circula a acusação de que se trataria de um incesto, cometido não com suas filhas, mas com sua irmã, Gisele, do qual teria nascido Rolando, o herói de Roncevaux. 

Esse nascimento excepcional, resultado de uma transgressão, é clássico para um personagem de canções de gesta, ou seja, de feitos heróicos.

As relações entre Carlos e Gisele parecem, porém, pertencer apenas à literatura. O erro de Carlos Magno continua desconhecido. 

A vida de são Gilles, obra do século X, descreve um Carlos Magno envergonhado, que não ousa admitir o deslize nem em confissão. 

Esse pecado que Carlos Magno não podia mencionar, mesmo para um santo, remete às contradições inerentes à imagem sagrada do soberano. 

Ele foi, afinal, um ministro de Deus que contribuiu para instalar um novo modelo social e matrimonial.

Fonte: Sylvie Joye, professora de história medieval da Universidade de Reims – Champagne-Ardenne

Apesar de proteger o cristianismo, Carlos Magno teria sido condenado por um estupro ilícito

PURGATÓRIO

No século XIII, Dante Alighieri escreveu a Divina comédia. Em sua viagem ao paraíso terrestre, o poeta descobre o monte Purgatório, rodeado de sete saliências que simbolizam os pecados capitais. 

Mesmo terrível, esse lugar foi motivo de esperança em momentos de radicalização das religiões: os “mais ou menos justos” e os descuidados da fé ganharam uma chance de se livrar das penas eternas.

Dante expõe a Divina comédia, como um caminho de purificação antes do encontro com Deus.

PURGATÓRIO CRISTÃO – A SALVAÇÃO POR UM FIO

por Jacques-Noël Peres

Depois da queda de Roma, no século V, Agostinho respondeu às angústias dos fiéis. 

Ele lhes prometeu que as penas após a morte seriam temporárias, mas dependeriam não só das ações em vida, mas também da disposição do Salvador.

O purgatório no cristianismo quase sempre foi apresentado em contextos de polêmica ou de crise. 

Foram as vicissitudes da história que levaram ao desenvolvimento de penas transitórias, para que o paraíso se tornasse mais acessível e, ao mesmo tempo, regulasse melhor o comportamento dos homens.

A história do purgatório é antiga, mas começa a tomar uma forma mais “oficial” no começo do século IV, quando uma crise sacudiu as comunidades cristãs. 

A responsabilidade era de um monge originário da atual Grã-Bretanha, Pelágio. 

Ele afirmou que as boas obras dos homens lhes valeriam a salvação.

Levando seu raciocínio às últimas conseqüências, se poderia dizer que o pecado seria uma obra sem serventia. 

E que aquele que se limita a fazer o bem não tem nenhuma necessidade de um salvador. Nessa perspectiva, o Cristo seria supérfluo – no melhor dos casos, só um modelo a seguir.

Na África, o bispo de Hipona, Agostinho, logo objetou que só obtém a graça da salvação quem crê no Cristo como redentor. A polêmica com Pelágio conduziu-o a outros argumentos. 

O bispo lembrou que Jesus viera para salvar todos os homens. Logo, isso significava que todos, ainda que fizessem boas obras, estavam em pecado e tinham necessidade do salvador.

Ele desenvolveu essa e outras idéias no ano 412. 0 que acontece com os que não cometeram nenhuma falta pessoal, como as crianças? 

Resta o pecado original, diz ele. A doutrina agostiniana do pecado original não é resultado de uma apreciação pessimista da natureza humana. Ela se deve mais a um otimismo sobre a salvação que vem de Deus.

Por volta de 420, um leigo de nome Lourenço interrogou seu amigo Agostinho sobre a maneira de honrar a Deus – queria algo escrito que lhe servisse de manual. 

O bispo se lançou ao trabalho e escreveu uma obra sobre a fé, a esperança e a caridade – as três virtudes teologais – um livro para ser facilmente manuseado, que ficou conhecido como Enchiridion (manual).

Em suas páginas, Agostinho comenta os versículos da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, na qual o apóstolo escreve que construir “fora de Cristo” é construir com materiais perecíveis como a madeira, o feno e outros que são destruídos pelo fogo. 

O bispo explica, então, que materiais são esses: o apego aos bens deste mundo, dos quais não nos separamos sem uma insuportável dor.

Aquele que, no entanto, tiver tomado Deus como fundamento, ainda que caia em tentação encontrará o Cristo como último recurso e será salvo. Daí ao de teorias sobre o pós-morte foi um passo.

Agostinho não deu detalhes sobre o fogo purificador ou purgatório. Ele apenas observou que nada é improvável no campo da fé.

O verbo latino purgare significa limpar ou purgar, mas também purificar e mesmo desculpar, suprimir a falta. 

Em outras palavras, isso remete à crise deflagrada por Pelágio. 

Mas para Agostinho, o que está em jogo é menos a qualidade do homem e mais uma decisão de Deus, uma graça pela qual o ser humano é inocentado de suas obras más, de seu pecado.

No Enchiridion, Agostinho foi um pouco mais longe. Afirmou que a oração dos vivos pelos mortos tem sua utilidade, mas não basta. 

É preciso que, durante a vida, os homens tenham experimentado a graça de descobrir em Jesus Cristo seu salvador.

Um acontecimento transtornou o africano Agostinho, que se sentia herdeiro da cultura romana antiga, para quem a ordem importa, e a desordem conduz ao caos. Em 410, Roma caiu sob o assalto de Alarico, líder dos visigodos. 

A pilhagem da cidade eterna foi sentida em todas as províncias do Império e até na África. O episódio colocou os cristãos em suspeição: teria sido o abandono das tradições que levou a desgraça a Roma?

Meditando sobre o que ele considerava uma catástrofe anunciadora de outras mais terríveis, Agostinho começou, em 413, a escrever uma de suas obras-primas, A Cidade de Deus.

Após o saque de Roma, em 410, Agostinho afirmou que os pecadores podiam se salvar.

No livro, ele reconhece o caráter temporário do fogo após a morte, até que advenha a ressurreição dos corpos e ocorra o dia da condenação ou da recompensa. Segundo sua interpretação, sentirão “o fogo de uma tribulação passageira” os que usaram a madeira e o feno em suas construções afetivas num mundo onde reina o pecado.

Naquelas décadas agitadas que se seguiram à pilhagem de Roma, com invasões de vândalos também na África, cada um buscava uma certeza sobre a qual se apoiar. 

Agostinho forneceu isso, como um reconforto e um encorajamento: “O tempo que se segue à morte é sentido por cada um segundo sua própria construção”.

Para Agostinho, porém, isso não era apenas questão de méritos pessoais, porque dessa forma estaria em contradição com a teologia da graça. 

Na tormenta das primeiras décadas do século V, a vida terrena e toda a ideia de futuro no Império Romano eram muito incertas para que se pudesse pensar num pós-morte exclusivamente arriscado e sofrido. Mas também não era indicado oferecer um além ameno e uma salvação fácil.

O bispo quis mostrar o caminho da salvação como possível, mas por uma vereda repleta de armadilhas, que exige atenção e dedicação do crente, assim como submissão ao Cristo. 

O conceito de purgatório de Agostinho foi ampliado por teólogos da Idade Média.

O fato de haver imprecisão em relação à descrição e à finalidade desse local de expiação de pecados não tira a importância da teologia desenvolvida pelo religioso. 

De fato, foi ele quem fixou o vocabulário que a partir de então foi empregado pela Igreja romana: purgatorius, que qualifica as penas ou os tormentos que levam ao Cristo bondoso; temporarius ou temporalis, para enfatizar que essas penas terão um fim; e transitorius, que implica um estado transitório para os mortos antes do julgamento no qual receberão a sentença final.

JACQUES-NOËL PERES è doutor em teologia e professor da Faculdade de do Instituto Superior de Estudos Ecumênicos.  

O Novo Testamento desenvolveu a ideia de Juízo Final, selando a sorte dos mortos. 

Na Idade Média, imagens sobre esse tema foram criadas pelos artistas mais brilhantes, alimentando como nunca o imaginário popular.

A idéia de morte definitiva, sem além, é recente e resulta do racionalismo moderno. 

Na Idade Média, a maioria dos ocidentais acreditava em Deus e na mensagem de Cristo sobre a vida eterna. 

Segundo a doutrina cristã, no dia do Juízo Final, as portas do paraíso se abrirão aos virtuosos. Já os maus serão condenados a sofrer no inferno.

O Juízo Final aparece no Novo Testamento e é apresentado por são Paulo como elemento primordial: o Cristo voltará no fim dos tempos. 

Quando houver essa aparição divina, todos os vivos e mortos comparecerão diante Dele e serão julgados com base nos seus atos.

Isso permite que Deus separe de modo definitivo seu rebanho e corrija as desordens perpetradas pelos homens no curso de sua história. Mas quando e onde terá lugar esse evento?

Durante a Idade Média, a questão ocupou os teólogos. 

No fim do século IV, são Jerônimo estimava que sinais avisariam os homens da iminência do Juízo. Outros diziam que o evento se daria na Páscoa sem precisar o ano. 

Quanto ao lugar, hesitavam entre o monte das Oliveiras e o vale de Josafá, perto de Jerusalém.

A complexidade da tarefa de julgar a humanidade intrigava a todos. Cogitava-se a ajuda de assessores todos os apóstolos, santos e anjos, por exemplo. 

No século XIII, são Tomás de Aquino ofereceu uma solução engenhosa e cômoda: o Juízo Final aconteceria instantaneamente, graças à força espiritual de Deus.

Mesmo que o Juízo Final fosse freqüentemente citado nos textos, esse momento não esteve presente nas artes antes da época românica (como o nome diz, um retorno à arquitetura de Roma), nos séculos XI e XII.

Foi preciso esperar a magnificência das igrejas góticas para que suas representações se generalizassem.

Hoje as igrejas são despojadas, mas na Idade Média eram repletas de obras de arte com cenas bíblicas. As imagens tinham função pedagógica: era assim que a maioria analfabeta compreendia os mistérios da fé.

O franciscano Boaventura, no século XIII, assume essa explicação: “É preciso dizer que as imagens não foram introduzidas na Igreja sem razão. Elas foram inventadas por causa da falta de instrução das pessoas comuns, que não sabiam ler”.

Os portais das igrejas eram também magnificentemente esculpidos porque os camponeses se reuniam e comerciavam as obras que os artistas incluíam nos portais desses templos em algumas proximidades. Frequentemente as cenas do julgamento divino de todos os homens, como 

na igreja de Conques, na França (ver págs. 68 e 69). O Juízo Final marca o fim dos tempos. Por isso deve ser confundido com o “juízo particular”. 

A questão da espera dos mortos pelo fim dos tempos inquietou os cristãos. 

A tese de que as almas conheceriam uma longa fase de sono até o Juízo Final foi rejeitada pelos pais da Igreja. Só no século XII esse julgamento individual foi imaginado como algo imediato.

Alguns pensaram, então, nas boas ações e os pecados que tiveram a conveniência de compilar, no formato de uma espécie de lista e o peso de cada uma dessas ocorrências.

JULGAMENTO 

O juízo particular evocava estranhamente o tribunal de Osíris e a pesagem da alma – tal como é representada no Livro dos Mortos. Os antigos egípcios acreditavam poder alcançar a vida eterna sob duas condições: a mumificação do corpo e a bondade da alma. 

A pesagem da alma era feita em uma balança: sobre um dos pratos era posto o coração do defunto; sobre o outro, estava a pluma de Maat, deusa da justiça. O coração do homem mau pesava mais que a pluma, e sua alma era devorada por um monstro. Já o do homem virtuoso era mais leve que a pluma, e sua alma podia viver eternamente ao lado de Osíris.

Os homens da Idade Média viviam com temor desse julgamento. Por isso procuravam multiplicar ações que lhes garantissem a salvação.

Em 1295, Dante começou uma carreira política ao lado dos guelfos brancos e defendeu os interesses da cidade contra as aspirações expansionistas do papa Bonifácio VIII (1294-1303). 

Em 1300, o poeta foi eleito “prior”, o mais alto cargo do Estado. Mas a queda não tardou. No ano seguinte os guelfos negros, papistas, tomaram o e liquidaram toda a oposição. 

Vítima de um processo político, Dante foi condenado inicialmente ao pagamento de uma multa por contumácia, e depois à pena de morte.

Daí em diante, conheceu apenas o exílio e passou a expressar suas idéias por meio de sua obra literária, sem poder desempenhar um papel no mundo real, ele se lançou em um périplo fantástico pelo além, explorando o inferno, o purgatório e o paraíso.

Dante não foi o primeiro a realizar tal viagem, mas renovou o gênero com sua concepção racional de um além estritamente terrestre. Derrotado por Deus, Satã, ao cair do céu, ficou encravado no centro da Terra, onde passou a reinar no inferno. 

Do outro lado do mundo estaria a montanha do purgatório, que os penitentes escalam lentamente até chegarem ao paraíso celeste.

Apesar de a obra de Dante se dividir em três partes iguais, é O inferno que oferece as visões mais arrebatadoras. 

Na companhia do poeta latino Virgílio, seu mentor e guia, Dante começa a viagem com a visita ao vasto funil aberto pela queda de Satã.

O inferno de Dante obedece a uma organização estrita: dividido em nove círculos, cada um subdividido em várias seções, ele oferece uma extraordinária variedade de suplícios, cujo horror cresce à medida que se aproxima a parte mais profunda do abismo.

CASTIGOS ETERNOS 

O vestíbulo concentra as almas puras, mas que não receberam o batismo, e por isso não podem ser salvas. 

Sua única pena consiste em não poder contemplar Deus. 

Os castigos só começam no segundo círculo, no qual um “vento negro” carrega a alma de todos aqueles que o amor enlouqueceu. 

Nos círculos seguintes, os glutões, os avarentos e os coléricos sofrem tormentos variados.

Até aí estamos no “alto inferno”. Os dois viajantes vêem, então, as muralhas de ferro que guardam a entrada do sexto círculo, onde começa o “baixo inferno”. A partir daí, as cenas de horror se multiplicam.

Os hereges do sexto círculo urram sem parar em suas tumbas em chamas. 

O sétimo círculo é a morada das várias categorias de indivíduos violentos. 

Seqüestradores e assassinos são condenados a ferver em um lago de sangue. 

Os suicidas habitam uma floresta lúgubre, onde as árvores choram e seus galhos são destruídos continuamente por harpias. 

Mais adiante estão os blasfemadores, espalhados por um deserto de areia onde recebem uma perpétua chuva de chamas.

O oitavo círculo, o dos pérfidos, é o mais variado: em seus fossos nauseabundos estão confinados os sedutores, os bajuladores, os prevaricadores, os magos e alquimistas. 

O nono círculo, gelado pelo sopro de Satã, está reservado aos traidores.

Enfim, os dois viajantes deparam com Lúcifer. Um ser gigantesco, com uma cabeça dotada de três rostos com três bocas devoradoras, e duas asas membranosas que batem no ar, espalhando um vento glacial. Com seus seis olhos, ele chora.

Depois de ter subido pelo corpo peludo do demônio, os dois homens se metem em uma trincheira que os leva à outra face do mundo, onde podem rever o brilho das estrelas. 

Eles se encontram ao pé da montanha do purgatório, cuja ascensão conduzirá Dante ao céu.

Ao contemplar o além e as consequências do pecado, o poeta entende que se redimiu de suas faltas e oferece uma visão aterradora do mundo real no qual viveu. 

Florença aparece no poema como uma “cidade de lobos”. Como prova, dos 79 personagens que ele encontra no inferno, cerca da metade são florentinos. 

Fonte: LAURENT VISSIÈRE é professor de história medieval da Universidade Paris- Sorbonne Il.

Ao ver Dante em uma rua de Verona, uma mulher explica às comadres que o poeta visitava regularmente o inferno, de onde trazia notícias. Outra acrescenta: “Você tem razão”.

Não viu como ele tem uma barba encarapinhada e a tez amorenada por causa do calor e da fumaça que existem lá?”. 

A observação não deixa de divertir o poeta no exílio. A anedota, talvez autêntica, ilustra o sucesso precoce de O inferno, a primeira das três partes da Divina comédia. 

Apesar do êxito da obra, nada predispunha Dante Alighieri (1265-1321) a viajar pelo além. Originário de uma antiga e arruinada família de Florença, ele tentou recuperar a posição social que sua família havia perdido em uma cidade dilacerada pela guerra civil.

No século XIII, Florença foi castigada por um violento enfrentamento entre guelfos e gibelinos. Os primeiros eram partidários do papa; os outros, do sacro imperador romano-germânico.

Depois de derrotar os gibelinos em 1266, os guelfos florentinos se dividiram em negros e brancos, os primeiros mais ligados ao papa e à aristocracia, e os outros mais próximos das camadas populares e defensores da independência da cidade. 

A situação se complicou em 1293, quando o “partido popular” (facção mais abastada da plebe, tomou o poder, antes controlado por antigas famílias nobres.

O JULGAMENTO FINAL

O Novo Testamento desenvolveu a idéia de Juízo Final, selando a sorte dos mortos. Na Idade Média, imagens sobre esse tema foram criadas pelos artistas mais brilhantes, alimentando como nunca o imaginário popular a idéia de morte definitiva, sem além, é recente.

A idéia resulta do racionalismo moderno. Na Idade Média, a maioria dos ocidentais acreditava Deus e na mensagem de Cristo sobre a vida eterna. Segundo a doutrina cristã, no dia do Juízo Final, as portas do paraíso se abrirão aos virtuosos. Já os maus serão condenados a sofrer no inferno.

O Juizo Final aparece no Novo Testamento e é apresentado por são Paulo como elemento primordial: o Cristo voltará no fim dos tempos. 

Quando houver aparição divina, todos os vivos e mortos comparecerão diante Dele e serão julgados com base nos seus atos.

Isso permite que Deus separe de modo definitivo seu rebanho e corrija as desordens perpetradas pelos homens no curso de sua história. Mas quando e onde terá lugar esse evento?

Durante a Idade Média, a questão ocupou os teólogos. No fim do século IV são Jeronimo estimava que sinais avisariam os homens da iminência do Juizo. Outros diziam que o evento se daria na Páscoa sem precisar o ano. 

Quanto ao lugar, hesitavam entre o monte das Oliveiras e o vale de Josafá, perto de Jerusalém. A complexidade da tarefa de julgar a humanidade intrigava a todos. Cogitava-se a ajuda de assessores – todos os apóstolos, santos e anjos, por exemplo. 

No século XIII, são Tomás de Aquino ofereceu luma visão engenhosa e comoda: o Juizo Final aconteceria instantanêamente, gracas à forca espiritual de Deus.

Mesmo que o Juízo Final fosse frequentemente citado nos textos, esse momento não esteve presente nas artes antes da época românica (como o nome diz, um arquitetura de Roma), nos séculos XI e XII. Foi preciso esperar a magnificência das igrejas góticas para que suas representações se generalizassem

Hoje as igrejas são despojadas, mas na Idade Mé dia eram repletas de obras de arte com cenas bíblicas. 

As imagens tinham função pedagógica: era assim que a maioria analfabeta compreendia os mistérios da fé.

O franciscano Boaventura, no século XIII, assume essa explicação: “É preciso dizer que as imagens não foram introduzidas na Igreja sem razão. Elas foram inventadas por causa da falta de instrução das pessoas comuns, que não sabiam ler”.

Os portais das igrejas eram também magnifica mente esculpidos porque os camponeses se reuniam e comerciavam nas proximidades. 

Freqüentemente os artistas incluíam nos portais desses templos algumas cenas do julgamento divino de todos os homens, como na igreja de Conques, na França (ver págs. 68 e 69).

O Juízo Final marca o fim dos tempos. Por isso não deve ser confundido com o “juízo particular”. Este último designa um processo destinado à alma, que começa a analisar as virtudes e defeitos dos mortos são pesados depois da morte de cada um. 

A questão da espera dos mortos pelo fim dos tempos inquietou os cristãos. A tese de que as almas conheceriam uma longa fase de sono até o Juizo Final foi rejeitada pelos pais da Igreja. Só no século XII esse julgamento individual foi imaginado como algo imediato.

Alguns pensaram, então, na convêniencia de compilar, no formato de uma espécie de lista, as boas ações e os pecados e o peso de cada uma dessas ocorrências.

JULGAMENT0 – O juízo particular evocava estranhamente o tribunal de Osíris e a pesagem da alma – tal como é representada no Livro dos Mortos. 

Os antigos egípcios acreditavam poder alcançar a vida eterna sob duas condições: a mumificação do corpo e a bondade da alma. A pesagem da alma era feita em uma balança: sobre um dos pratos era posto o coração do defunto; sobre o outro, estava a pena de Maat, deusa da justiça. 

O coração do homem mau pesava mais que a pena, e sua alma era devorada por um monstro. Já o do homem virtuoso era mais leve que a pena, e sua alma podia viver eternamente ao lado de Osíris.

Os homens da Idade Media viviam com temor desse julgamento. Por isso, procuravam multiplicar ações que lhes garantissem a salvação.

GRANDES TEMAS INFERNO E PARAÍSO

EDIÇÃO ESPECIAL TEMÁTICA Nº 25 BRASIL  

CHRISTIAN HELL – THE DARKNESS

by Liliane Crété

Between the 3rd and 6th centuries, the perception of hell led men of the Church to heated debates. From Clement of Alexandria to Pope Gregory the Great, passing through Augustine, the outlook became radicalized

They were more flexible in ancient times, when the purgation of sins was violent, but necessary for an intense and perennial reunion with the Most High. 

In other words, in the end, depending on the man’s heart, everything could work out. 

This less radical vision of the Last Judgment, however, did not survive the Middle Ages. And the theory of eternal damnation triumphed. 

Especially because this suited a hegemonic religion, which wanted to increase its power and, mainly, its control over believers.

In the Old Testament, the term Sheol designates the dark, underground place of the dead, where the evil and the good alike descend. The idea of ​​divine punishment after death had not yet occurred to the Hebrews: when God was displeased, he punished men during life.

In the New Testament, the punitive aspect of Sheol appeared, becoming hell. In the 1st century AD, it was defined as a place of stay for souls excluded from the kingdom of God, a view rooted among the Pharisees, one of the four movements of Judaism.

Jesus himself, during his ministry, threatened the wicked with the terror and pain of eternal fire. From this teaching, his followers, coming from

The paganism, adopted the version of two places, heaven and hell. And the terrifying visions of demons and tortured creatures would fuel the Christian imagination for centuries to come.

Until the fourth century, one could not speak of Christian orthodoxy, but of Christian currents of thought. This is because Christianity developed in different regions, under different forms. Faced with criticism from Jews and pagans, some wise men took the pen to defend Christianity. In all apologists there was the same concern about man’s fate after death, as Jesus promised the kingdom for the righteous and punishment for the wicked.

Clement, considered the founder of Alexandrian theology, was a Greek theologian who lived approximately between the years 150 and 220. A pagan by birth, he approached Christianity through philosophy. He mentions Plato’s texts about the punishments of the afterlife and the hope of another life in his work The Stromatians.

Clement of Alexandria, as he was called, rejects the idea of ​​punishment by fire, which was “stolen from barbarian philosophy”. He reserves the same judgment for the notion of the devil, chief of demons. Like Plato, the ex-pagan Greek sees him only as an “evil soul”.

ACCORDING TO SAINT AUGUSTINE, HUMANITY INHERITS, GENERATION AFTER GENERATION, ADAM’S SIN. THEN, ALL ARE GUILTY AND CONDEMNABLE

Clemente’s God is infinitely good and just, given only to educational punishments, which resulted in an optimistic vision of salvation: every Christian could and should hope for eternal happiness, even the righteous who did not know Jesus. 

Confronted with the fact that Christ himself had spoken of baptism of fire, he deduced that it was an “intelligent” fire, which penetrated the sinful soul to sanctify it and purge it of impurities in view of the restoration Final. His positions, however, displeased the Roman Church.

Origen (185-253) then took the place of a great scholar of Alexandrian theology. Also theologian, was the first Christian writer born into a Christian family. Like Clement, he believed in the great goodness and mercy of God. “God, our savior, wants all men to be saved and to attain the knowledge of the truth,” he said, drawing on First Timothy.

He developed Clement’s thesis of final restoration (which he called apocatastasis), according to which all humanity would be encompassed and recapitulated in Jesus Christ. In other words, all humanity would be saved.

In his works Peri Archon and Treatise on Principles, Origen wrote: “We think that the goodness of God will unite through his Christ all creation in a single end, after having reduced and subjected even the enemies.” 

The word “submitted” here expresses a non-violent, non-forced, but voluntary submission to Christ.

He also rejects the notion of fiery punishment applied to the wicked by demons. It is not a material fire, but a spiritual one, lit by the sins of those who are not righteous. Souls would be tortured by the awareness of sins and separation from God, by blindness in relation to the perfect harmony and organization of the world created by Him.

But, from this perspective, every punishment should allow the guilty person to amend and reunite with the worst. Apocatastasis, for Origen, is the return to initial unity, which dispenses with the notions of “absolute evil”, damnation and eternal separation from God. 

Again, the Catholic hierarchy did not agree. He vigorously reprimanded him for this position. 

His work was attacked in the following centuries, precisely in those in which the Church built its hegemony in Europe. 

Appeased for a certain time, the quarrel became more intense in the 6th century. At the II Ecumenical Council of Constantinople, which met in 553, the Alexandrian doctrine was cursed. The last decrees were against heretics. Origenes was at the bottom of the list. Tragic condemnation: a

From then on, the vision of hell that was considered by the Church and that the priests would use to their satiety to keep the faithful obedient, became that of Augustine, genius of Latin Christianity.

THE BISHOP OF HIPPONA Son of a Christian mother, but a pagan in childhood, Augustine was born in 354, in Tagastus, in Numidia. 

In his youth, he joined Manichaeism, a movement founded in the 3rd century by the Persian prophet Mani – called by some Manichaeus. He later denied the past ideology and converted to Christianity. 

He then began to create doctrines in the heat of the controversies of his time.

When he became bishop of Hippo, Augustine relentlessly fought the concepts of Manichaeism, which he knew very well, and also the ideas of the monk Pelagius, for whom man played a role in

For Origen of Alexandria, even sinners would be saved on Judgment Day

Augustine firmly rejected, in addition to salvation for all, the thesis of the preexistence of souls and, therefore, of a spiritual creation prior to material creation. 

In The City of God, he frontally attacked Origen several times.

The problem of evil worried him, and for this reason Manichaeism, with its integral dualism, attracted him for some time. The first sin of Adam and Eve was a central topic of reflection for Augustine, who wanted to understand how God had let Adam sin.

At a certain point, a theory arises in his mind: humanity inherits, generation after generation, Adam’s sin. So everyone is to blame and that he encountered serious opposition around him.

But God, in his great kindness, chose to save a part of humanity. 

However, to talk about election for a small number is to talk about the rejection of the larger number. 

Thus, in The City of God, he dedicated an entire book to the Last Judgment and another to the torture of the “evil” – which proves that the subject interested him.

Augustine placed the Last Judgment as a continuous series of judgments, beginning when God expelled Adam and Eve from paradise. 

He reviewed all the Bible’s mentions of the subject, with the book of Revelation occupying a central position. 

Then he insisted on the separation of the good and the bad on the last day, as a wrote Augustine. 

After the Final Judgment, he said, there will be a second death for the unjust, much more terrible: “Of all evils, the worst: that death which no longer comes from the separation of soul and body, but from the eternal union of both in suffering.” – eternal lives. 

It is then that men will no longer be ‘before death’ and ‘after death’, but always ‘in death’, that is, never alive, never dead, but dying without end”.

THE ABYSS Augustine was based on Holy Scripture, but it must be said that his interpretation of biblical texts, especially those from the Old Testament, shows the controversial use he made of them and his evident ignorance of Jewish thought. In any case, Christian thinkers have always placed good and evil, heaven and hell, salvation and damnation in perfect balance. 

Reducing the suffering of the damned would compromise heavenly happiness.

Augustine said everything about hell. All that was left was to definitively fix its place. 

Pope Gregory the Great (approximately 540 to 604) took care of this. 

The most likely, according to him, is that it was “underground”, as the Hebrew Sheol was, except that its inhabitants are not shadows, but rather beings condemned by God’s justice to suffer torture forever.

The “subterra” option is in accordance with the New Testament, in particular with the Apocalypse, in which the residence of the damned and demons is clearly located in a deep abyss, as far as possible from the heavens, the abode of God, the angels and the elect.

Gregory the Great was an admirer of Augustine and took up his concepts to make them dogmas of Catholicism, added with superstitious elements. From that moment on, Christianity placed sin and its consequences at the center of its theology.

Until 2007, the papacy itself made its own the Augustinian idea of ​​limbo, a place to welcome children who died without having undergone baptism. There, these innocent souls would remain for eternity, deprived of the vision of God.

The hell of Gregory the Great, which became the hell of all Western Christianity, is like that of Augustine: a place where the damned are never alive, never dead, but dying without ceasing in torment. 

What an incredible vision of the hardships of the monk Wetti who, on the verge of death, was taken by an angel to different places in hell, where sinners were tortured.

He came across priests and the women who seduced them: they were sunk in the fire to the point of sex. In a castle of wood and stone, completely enveloped in smoke, the angel told him that the monks were there, taken there for purgation.

To his great surprise, Wetti recognized Charlemagne, “standing, with his genitals torn apart by the bites of an animal, and the rest of his body unharmed.” The torment suffered by the emperor clearly indicated the nature of his sin.

The angel explained to Wetti that “he could not avoid remembering all the good that the emperor had done for the defense of the Catholic faith and the protection of the Holy Church.” 

Charlemagne, however, committed an unlawful rape, believing that he would be compensated for his good deeds. 

He was wrong. The angel, however, reassured Wetti: “he is predestined to share the lives of the elect”, he said, and there he received only a temporary punishment, designed to purge his errors.

Wetti existed. A monk from the abbey of Reichenaum, on Lake Constance, he died on November 4, 824 – 10 years after Charlemagne. 

He narrated the vision on the eve of his death. The abbot of his monastery, Heito, wrote it in prose, and later a disciple of Wetti, Walafrid Strabon, wrote a verse version.

Heito did not mention the emperor. Walafrid did not name him either, but he made the allusion evident by forming Charlemagne’s name with the first letter of the verses dealing with the sovereign’s misfortunes.

At the time, such reports aimed to circulate messages of a political nature. In 824, Wetti’s vision was inserted in a context of reform of the Church and society, which emphasized concepts of purity and taint that until then had not occupied a central place. The private life of Charlemagne, even if none

contemporary dared to criticize her, it was not that of an exemplary Christian: married five times, he had several children with different concubines. 

This aspect is nothing very surprising or shocking for a sovereign. Apparently, Carlos’ privileged relationships with his daughters provoked more comments – although not explicit.

This occurred as the legislation of Christian marriage – performed in public, monogamous and indissoluble – developed, transforming infractions and obscenities that until then were considered simple crimes into sin.

Several historians have tried to identify Charlemagne’s sin. Since the Middle Ages, the accusation has circulated that it was incest, committed not with his daughters, but with his sister, Gisele, from whom Roland, the hero of Roncevaux, was born. 

This exceptional birth, the result of a transgression, is classic for a character in songs of deeds, that is, of heroic deeds.

The relationships between Carlos and Gisele seem, however, to belong only to literature. Charlemagne’s error remains unknown. 

The Life of Saint Gilles, a work from the 10th century, describes an embarrassed Charlemagne, who does not dare admit his mistake even in confession. 

This sin that Charlemagne could not mention, even for a saint, refers to the contradictions inherent in the sacred image of the sovereign. He was, after all, a minister of God who contributed to installing a new social and marriage model.

He is predestined to leave, and there he received a punishment to purge his errors.  Reichenaum Abbey, on the 4th of November of Charles Mag- era of his death. Heito wrote it in de Wetti, Walafrid in verse.

PURGATORIO

In the 13th century, Dante Alighieri wrote the Divine Comedy. 

On his journey to earthly paradise, the poet discovers Mount Purgatory, surrounded by seven projections that symbolize the capital sins. 

Even though it was terrible, this place was a reason for hope in times of radicalization of religions: the “more or less just” and those careless about faith gained a chance to free themselves from eternal punishment.

Dante exposes the Divine Comedy, as a path of purification before the encounter with God.

CHRISTIAN PURGATORY SALVATION BY – by Jacques-Noël Peres

After the fall of Rome, in the 5th century, Augustine responded to the anguish of the faithful. 

He promised them that the punishments after death would be temporary, but would depend not only on actions in life, but also on the Savior’s disposition.

Purgatory in Christianity was almost always presented in contexts of controversy or crisis. 

It was the vicissitudes of history that led to the development of transitional penalties, so that paradise would become more accessible and, at the same time, better regulate men’s behavior.

The history of purgatory is ancient, but it began to take on a more “official” form at the beginning of the 4th century, when a crisis shook Christian communities. The responsibility was that of a monk originally from present-day Great Britain, Pelagius. 

He asserted that men’s good works would earn them salvation.

Taking his reasoning to its ultimate consequences, one could say that sin would be a useless work. 

And that he who limits himself to doing good has no need for a savior. 

From this perspective, Christ would be superfluous – at best, just a model to follow.

In Africa, the bishop of Hippo, Augustine, immediately objected that only 

those who believe in Christ as redeemer obtain the grace of salvation. The controversy with Pelagius led him to other arguments. 

The bishop remembered that Jesus had come to save all men. 

Therefore, this meant that everyone, even if they did good works, were in sin and needed the Savior.

He developed this and other ideas in the year 412. What happens to those who have not committed any personal fault, such as children? 

Original sin remains, he says. The Augustinian doctrine of original sin is not the result of a pessimistic assessment of human nature. It is more due to an optimism about the salvation that comes from God.

Around 420, a layman named Lorenzo asked his friend Augustine about how to honor God – he wanted something written to serve as a manual. 

The bishop threw himself into work and wrote a work on faith, hope and charity – the three theological virtues -, a book to be easily handled, which became known as Enchiridion (manual).

In its pages, Augustine comments on the verses of Paul’s First Epistle to the Corinthians, in which the apostle writes that building “outside of Christ” is building with perishable materials such as wood, hay and others that are destroyed by fire. 

The bishop then explains what these materials are: attachment to the goods of this world, from which we cannot part without unbearable pain.

He who, however, has taken God as his foundation, even if he falls into temptation, will find Christ as a last resort and will be saved. From there to theories about the after-death it was a step: those who of some development

In the way they loved perishable goods, they could, however, be saved “by means of a certain fire”. Augustine did not give details about this purifying fire or purgatory. He only noted that nothing is improbable in the field of faith.

The Latin verb purgare means to cleanse or purge, but also to purify and even excuse, to suppress the lack. In other words, this refers to the crisis triggered by Pelagius. 

But for Augustine, what is at stake is less the quality of man and more a decision of God, a grace by which human beings are innocent of their evil works, of their sin.

In the Enchiridion, Augustine went a little further. He stated that the prayer of the living for the dead has its uses, but it is not enough. It is necessary that, during their lives, men have experienced the grace of discovering their savior in Jesus Christ.

An event upset the African Augustine, who felt heir to ancient Roman culture, for whom order matters, and disorder leads to chaos. In 410, Rome fell to the assault of Alaric, leader of the Visigoths. 

The pillage of the eternal city was felt in all provinces of the Empire and even in Africa. 

The episode placed Christians under suspicion: was it the abandonment of traditions that brought misfortune to Rome?

Meditating on what he considered a catastrophe that heralded other more terrible ones, Augustine began, in 413, to write one of his masterpieces, The

After the sack of Rome in 410, Augustine stated that sinners could be saved

Pillage of Rome in 410 by Alaric, king of the Visigoths, Quache on paper, unknown author 20th century

God’s city. In the book, he recognizes the temporary nature of fire after death, until the resurrection of the bodies occurs and the day of condemnation or reward occurs. 

According to his interpretation, those who used wood and hay in their emotional constructions will feel “the fire of a temporary tribulation” in a world where sin reigns.

In those hectic decades that followed the pillage of Rome, with invasions of vandals also in Africa, everyone was looking for a certainty on which to rely. 

Augustine provided this as comfort and encouragement: “The time that follows death is felt by each person according to his own construction.”

For Augustine, however, this was not just a matter of personal merits, because in this way it would be in contradiction with the theology of grace. 

In the storm of the first decades of the 5th century, earthly life and the entire idea of ​​the future in the Roman Empire were too uncertain to allow us to think about an exclusively risky and painful after-death. 

But it was also not advisable to offer a pleasant afterlife and an easy salvation.

The bishop wanted to show the path to salvation as possible, but along a path full of traps, which requires attention and dedication from the believer, as well as submission to Christ. Augustine’s concept of purgatory was expanded upon by theologians of the Middle Ages.

The fact that there is inaccuracy regarding the description and purpose of this place of atonement for sins does not take away the importance of the theology developed by the religious. In fact, it was he who established the vocabulary that was from then on used by the Roman Church: purgatorius, which describes the punishments or torments that lead to the kind Christ; temporarius or temporalis, to emphasize that these penalties will have an end; and transitorius, which implies a transitory state for the dead before the judgment in which they will receive the final sentence.

JACQUES-NOËL PERES is a doctor of theology and professor at the Faculty of

The New Testament developed the idea of ​​the Last Judgment, sealing the fate of the dead. 

In the Middle Ages, images on this theme were created by the most brilliant artists, fueling the popular imagination like never before.

The idea of ​​definitive death, without beyond, is recent and results from modern rationalism. 

In the Middle Ages, most Westerners believed in God and Christ’s message of eternal life. 

According to Christian doctrine, on the day of Judgment, the doors of paradise will open to the virtuous. The wicked will be condemned to suffer in hell.

The Last Judgment appears in the New Testament and is presented by Saint Paul as a primordial element: 

Christ will return at the end of time. When there is this divine appearance, all the living and dead will appear before Him and will be judged based on their actions.

This allows God to definitively separate his flock and correct the disorders perpetrated by men throughout their history. But when and where will this event take place?

During the Middle Ages, the question occupied theologians. At the end of the fourth century, Saint Jerome estimated that signs would warn men of the imminence of Judgment. Others said that the event would take place on Easter without decide the year. 

As for the place, they hesitated between the Mount of Olives and the Valley of Jehoshaphat, near Jerusalem.

The complexity of the task of judging humanity intrigued everyone. The help of advisors was considered, all the apostles, saints and angels, for example. 

In the 13th century, Saint Thomas Aquinas offered an ingenious and convenient solution: the Last Judgment would happen instantly, thanks to the spiritual strength of God.

Even though the Last Judgment was frequently mentioned in texts, this moment was not present in the arts before the Romanesque period (as the name says, a return to the architecture of Rome), in the 11th and 12th centuries. 

It was necessary to wait for the magnificence of the Gothic churches for their representations to become widespread.

Today the churches are bare, but in the Middle Ages they were filled with works of art depicting biblical scenes. 

The images had a pedagogical function: this was how the illiterate majority understood the mysteries of faith.

The Franciscan Bonaventure, in the 13th century, adopted this explanation: 

“It must be said that images were not introduced into the Church without reason. 

They were invented because of the lack of education of common people, who did not know how to read.”

The portals of the churches were also magnificently carved because the peasants gathered and traded in the temples. 

Often the scenes of the divine judgment of all men, as in the church of Conques, in France (see pages 68 and 69). The Last Judgment marks the end of times. 

Therefore, it should be confused with “private judgment”. 

The latter designates a process destined for the soul, which begins after each person’s death.

The question of the dead waiting for the end of times worried Christians. The thesis that souls would experience a long phase of sleep until the Final Judgment was rejected by the Church fathers. 

Only in the 12th century was this individual judgment imagined as something immediate.

Some thought, then, in the unata, the good deeds and the sins convenience of compiling, in the format of a kind of list and the weight of each of these occurrences.

JUDGMENT The private judgment strangely evoked the court of Osiris and the weighing of the soul – as represented in the Book of the Dead. 

The ancient Egyptians believed they could achieve eternal life under two conditions: the mummification of the body and the goodness of the soul. 

The soul was weighed on a scale: the deceased’s heart was placed on one of the plates; on the other was the feather of Maat, goddess of justice. 

The evil man’s heart weighed more than a feather, and his soul was devoured by a monster. The virtuous man’s was lighter than the feather, and his soul could live eternally next to Osiris.

Men in the Middle Ages lived in fear of this judgment. That is why they sought to multiply actions that would guarantee their salvation.

In 1295, Dante began a political career alongside the White Guelphs and defended the city’s interests against the expansionist aspirations of Pope Boniface VIII (1294-1303). 

In 1300, the poet was elected “prior”, the highest position in the state. But the fall was not long in coming. The following year the black Guelphs, papists, took over and liquidated all opposition. 

Victim of a lytic power process, Dante was initially sentenced to pay a fine for contumacy, and then to the death penalty.

From then on, he experienced only exile and began to express his ideas through his literary work Without being able to play a role in the real world, he launched himself on a fantastic journey through the afterlife, exploring hell, purgatory and the Paradise.

Dante was not the first to undertake such a journey, but he renewed the genre with his rational conception of a strictly terrestrial beyond. 

Defeated by God, Satan, upon falling from heaven, was trapped in the center of the Earth, where he began to reign in hell. 

On the other side of the world would be the mountain of purgatory, which penitents slowly climb until they reach the heavenly paradise.

Although Dante’s work is divided into three equal parts, it is Hell that offers the most captivating views. In the company of the Latin poet Virgil, his mentor and guide, Dante begins the journey with a visit to the vast funnel opened by the fall of Satan.

Dante’s hell obeys a strict organization: divided into nine circles, each subdivided into several sections, it offers an extraordinary variety of tortures, the horror of which grows as one approaches the deepest part of the abyss.

ETERNAL PUNISHMENTS The vestibule gathers pure souls, but who have not received baptism, and therefore cannot be saved. 

His only penalty is not being able to contemplate God. 

The punishments only begin in the second circle, in which a “black wind” carries the souls of all those whom love has driven mad. In the following circles, the gluttons, the greedy and the choleric suffer various torments.

Until then we are in “high hell”. The two travelers then see the iron walls that guard the entrance to the sixth circle, where the “lower hell” begins. 

From then on, the horror scenes multiply.

The heretics of the sixth circle roar without stopping in their burning tombs. 

The seventh circle is the home of the various categories of violent individuals. 

Kidnappers and murderers are condemned to boil in a lake of blood. The suicides inhabit a dismal forest, where the trees weep and their branches are continually destroyed by harpies. Further ahead are the blasphemers, spread across a

sandy desert where they receive a perpetual rain of flames.

The eighth circle, that of the perfidious, is the most varied: in its nauseating pits are confined the seducers, the flatterers, the prevaricators, the magicians and alchemists. 

The ninth circle, frozen by the breath of Satan, is reserved for traitors.

Finally, the two travelers come across Lucifer. 

A gigantic being, with a head equipped with three faces with three devouring mouths, and two membranous wings that beat in the air, spreading an icy wind. With his six eyes, he cries.

After climbing up the demon’s hairy body, the two men enter a trench that takes them to the other side of the world, where they can see the shine of the stars. 

They meet at the foot of the mountain of purgatory, whose ascent will lead Dante to heaven.

By contemplating the afterlife and the consequences of sin, the poet understands that he has redeemed himself for his faults and offers a terrifying vision of the real world in which he lived. 

Florence appears in the poem as a “city of wolves”. 

As proof, of the 79 characters he encounters in hell, about half are Florentines. 

LAURENT VISSIÈRE is professor of medieval history at the University Paris- Sorbonne Il

See Dante on a street in Verona, a woman explains to the godmothers that the poet regularly visited hell, from where he brought news. 

Another adds: “You’re right. Didn’t you see how he has a curly beard and a dark complexion because of the heat and smoke there?” 

The observation never fails to amuse the poet in exile. The anecdote, perhaps authentic, illustrates the early success of

Hell, the first of three parts of the Divine Comedy. 

Despite the success of the work, nothing predisposed Dante Alighieri (1265-1321) to travel to the afterlife. 

Originally from an ancient and ruined family in Florence, he tried to regain the social position that his family had lost in a city torn apart by civil war.

In the 13th century, Florence was punished by a violent confrontation between Guelphs and Ghibellines. The first were supporters of the pope; the others, from the Holy Roman-German emperor.

After defeating the Ghibellines in 1266, the Florentine Guelphs were divided into blacks and whites, the first more linked to the pope and the aristocracy, and the others closer to the popular classes and defenders of the city’s independence. 

The situation became more complicated in 1293, when the “popular party” (the wealthiest faction of the common people) took power, previously controlled by ancient noble families.

In 1295, Dante began a political career alongside the White Guelphs and defended the city’s interests against the expansionist aspirations of Pope Boniface VIII (1294-1303). 

In 1300, the poet was elected “prior”, the highest position in the state. But the fall was not long in coming. The following year the black Guelphs, papists, took power and liquidated all opposition. Victim of a political trial, Dante was initially sentenced to pay a fine for contumacy, and then to the death penalty.

From then on, he only knew exile and began to express his ideas through his literary work. Without being able to play a role in the real world, he embarked on a fantastic journey into the afterlife, exploring hell, purgatory and paradise.

Dante was not the first to undertake such a journey, but he renewed the genre with his rational conception of a strictly terrestrial beyond. 

Defeated by God, Satan, upon falling from heaven, was trapped in the center of the Earth, where he began to reign in hell. On the other side of the world would be the mountain of purgatory, which penitents slowly climb until they reach the heavenly paradise.

Although Dante’s work is divided into three equal parts, it is Hell that offers the most captivating views. In the company of the Latin poet Virgilio, his mentor and guide, Dante begins the journey with a visit to the vast funnel opened by the fall of Satan.

In 553, the Council of Constantinople transformed the Augustinian view of hell into official doctrine of the Church.

Fonte: Grandes Temas – Inferno e Paraíso – Edição especial temática no 25 – www.historiaviva.com.br 

Divulgado por

Logotipo, nome da empresa

Descrição gerada automaticamente